CÂMARA ÚNICA - TURMA CRIMINAL
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0090.10.000302-0
Apelante: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE RORAIMA
Apelado: DENILSON TRINDADE DOUGLAS
Procuradores Federais: Drs. FÁBIO CAMPELO CONRADO DE HOLANDA e HELENA MARIE FISH GALIANO
Relator: Des. MAURO CAMPELLO
RELATÓRIO
Trata-se de Apelação Criminal interposta pelo Ministério Público do Estado de Roraima, em face de sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito da Comarca de Bonfim, que deixou de apreciar o mérito da denúncia do Parquet, para declarar a ausência do jus puniendi estatal neste caso, diante do julgamento do fato por comunidade indígena, com fundamento no art. 57 do Estatuto do Índio e art. 231 do Constituição Federal.
Nas suas razões recursais, o Ministério Público alega que houve transgressão ao monopólio da ação penal pública incondicionada e violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, postulando a reforma da sentença para que seja dado prosseguimento ao feito.
Em contrarrazões, a Advocacia Geral da União, enfatizando a necessidade de reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e a importância do art. 231 da CF, pede que seja mantida inalterada a sentença.
Em seu parecer, a douta Procuradoria de Justiça opina pelo conhecimento e desprovimento do apelo ministerial.
Retornaram-me os autos.
É o relatório. À douta revisão.
Boa Vista, 15 de dezembro de 2015.
Des. MAURO CAMPELLO
VOTO
Devem ser conhecido o recurso de apelação do Ministério Público.
Passo ao exame do mérito.
De logo, transcrevo trecho da sentença cujo teor é imprescindível para a clara compreensão do caso, cuja excepcionalidade o Juiz a quo e demais atores processuais corretamente reconheceram:
Ao réu é imputado o crime de homicídio qualificado inserto no art. 121, § 2º, II, do CPB.
[...]
O fato ocorreu no dia 20/06/2009 na comunidade indígena do Manoá, terra indígena Manoá/Pium, Região Serra da Lua, município de Bonfim-RR, onde o acusado DENILSON (índio) após ingerir bebida alcoólica desferiu facadas na vítima ALANDERSON (índio), seu irmão, ocasionando-lhe a morte. Vê-se, portanto, que se cuida de acusado e vítima, ambos índios, sobre fato ocorrido dentro de terra indígena.
Após o ocorrido, reuniram-se Tuxauas e membros do conselho da comunidade indígena do Manoá no dia 26/06/2009, conforme consta às fls. 68/73, para deliberar eventual punição ao índio Denilson. Após oitiva do acusado e de seus pais e outras pessoas, concluíram pela imposição de várias sanções, entre as quais a construção de uma casa para a esposa da vítima, a proibição de ausentar-se da comunidade do Manoá sem permissão dos Tuxauas".
Contudo, no dia 06 de abril do corrente ano, reuniram-se novamente as lideranças indígenas, Tuxaus de várias comunidades, entre elas, Anauá, Manoá, Wai Wai, e servidores da Funai, estes últimas apenas presenciaram a reunião [...] Após oitiva das autoridades indígenas, foi imposta ao indígena DENILSON as seguintes penalidades, conforme consta na ata de fls. 185/187:
"1. O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região do Wai Wai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de redução conforme seu comportamento;
2. Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a Convivência, o costume, a tradição e moradia junto ao povo Wai Wai;
3. Participar de trabalho comunitário;
4. Participar de reuniões e demais eventos desenvolvido pela comunidade;
5. Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com o tuxaua;
6. Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxaua;
7. Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua;
8. Aprender a cultura e a língua Wai Wai;
9. Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar (sic) outra decisão". (fls. 224).
Cabe acentuar que todo o procedimento supramencionado foi realizado sem mencionar um momento algum a legislação estatal, tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhe confere".
Ao final, a r. sentença ora objurgada, considerando o que denominou "Duplo Jus Puniendi", "deixou de apreciar o mérito da denúncia do Órgão Ministerial, representante do Estado, para DECLARAR A AUSÊNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL, em face do julgamento do fato por comunidade indígena".
Desde logo, data venia divirjo da conclusão do ilustre Magistrado a quo, de que "não se trata de bis in idem, pois os entes detentores do direito de punir são distintos e não apenas o Estado" (fls. 224).
Se o que denomina o Juiz sentenciante de "Duplo Jus Puniendi" significa que há dois entes juridicamente legitimados a punir uma infração penal, e julgando um deles um certo crime, não poderá se imiscuir o outro no mesmo fato, arrogando para si o direito de examinar a culpabilidade do agente e eventualmente responsabilizá-lo também, pois isto seria se outro modo, justamente, aquilo que veda o brocardo "Nemo debet bis vexari pro una et eadem causa" (Ninguém deve ser sancionado mais de uma vez por um e mesmo fato), cuja contração correspondo ao non bis in idem. Este princípio não implica [apenas] que um mesmo ente não pode punir duas vezes o mesmo fato, e sim, como garantia processual penal ampla do indivíduo, que este não pode ser punido duas vezes por um/pelo mesmo fato, qualquer que seja o ente que o pune.
Tenho que a compreensão para o caso deve ser a que percebe violado o princípio non bis in idem no presente caso, não porque seja refratário a novos institutos que possam ser reconhecidos na casuística judicial, mas apenas porque me parece que o "Duplo Jus Puniendi" poderia acender um debate paralelo acerca de conflito de jurisdições, e que esse novel instituto não suplantaria adequadamente o argumento da acusação de que se haveria violado na espécie princípio da inafastabilidade da jurisdição. Sobre este último ponto, se se reconhece que caso é de incompetência da jurisdição estatal em razão da matéria, haja vista o anterior julgamento pela comunidade, esvai-se a alegada violação ao art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. Ademais, o "Duplo Jus Puniendi", aparentemente alicerçado na hipótese de que o direito da comunidade indígena é autônomo em relação ao direito estatal, parece criar uma situação paradoxal, pois, a só tempo, afasta certas normas estatais ("[...] não considero aplicáveis ao caso regras processuais penais [...] já que as normas relativas ao processo [...] são limitadoras ao direito de punir estatal e não ao direito de punir das comunidades indígenas", cf. fls. 224), mas tolera a incidência de outras, como aquelas do Estatuto do Índio.
Em todo caso, o reconhecimento de situação de bis in idem não é apenas uma escolha pela via menos problemática. Este Julgador realmente concorda com Juan Carlos Ferré Olivé quando este diz que "[...] el Principio ne bis in idem exige que una vez impuesta la la sanción por parte de su comunidad no pueda volver a imponerse íntegramente una pena estatal".
À medida que do que se trata aqui é de violação à regra non bis in idem, tem-se então uma questão envolvendo claramente direitos humanos.
Em primeiro lugar, porque a vedação non bis in idem corresponde a um direito humano previsto em instrumento internacional, conforme se pode ver no art. 8, 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado de direitos humanos do qual o Brasil faz parte: "Artigo 8. Garantias judiciais [...] 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos" (destaquei).
Trata-se, pois, de uma regra universalmente aceita pelos Estados democráticos, a qual pode ser interpretada, como o é no Brasil, para impedir a injustiça que há na aplicação de uma pena no Estado contra um ofensor já punido no âmbito estrito de sua comunidade de vivência. Embora vetusta em muitos pontos, em relação a este que se discute a Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio) deve ser considerada modelar ao prever expressamente a possibilidade de sanções penais dou disciplinares por comunidades indígenas contra seus próprios membros, o que, por inferência lógica que observe o non bis in idem, afasta a jurisdição penal estatal. Registre-se o teor do dispositivo em comento do Estatuto do Índio, que parece trazer implícita a vedação do bis in idem:
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.
Embora concorde com o Juiz a quo em que "o caso em estudo não tem precedente judicial monocrático [na jurisdição brasileira]", destaco que do direito comparado se pode extrair lições interessantes, pois em alguns países a apreciação judicial da matéria não é nova.
Nos Estados Unidos, onde as comunidades indígenas nativas, habitantes em reservas autogovernadas (Indian country), possuem ampla autonomia sobre suas terras, a questão há anos suscita um rico debate jurídico. Em artigo de 2004, Terrill Pollman destacava:
A ambivalência do governo federal no tocante à soberania de tribos nativas é normalmente um fato tranquilo na vida neste país. Agora, contudo, as cortes regionais federais têm perturbado essa tranquilidade, tomando decisões opostas sobre a questão de saber se a cláusula Double Jeopardy (dupla responsabilização) impede sucessivas acusações, no âmbito tribal e federal, de não indígenas em terra indígena [Indian Country].
[...] Além das consequências práticas, há também os efeitos doutrinários e teóricos. [...] Como tantos casos de direito indígena, um só caso se torna um microcosmo para o universo do direito indígena, levantando questões fundamentais: Quais são os limites da soberania tribal? Onde está a fonte da soberania tribal? Quem decide as respostas a essas perguntas?".
No mesmo texto, esclarece que há o entendimento dominante de que a jurisdição comunitária, uma vez implementada, torna desnecessária a atuação do Estado-Juiz: "O tribunal tribal tem competência concorrente ao abrigo da Lei de Crimes Graves (Major Crimes Act), e, portanto, se a tribo inicia a persecução do réu antes de que a instância federal o faça, aqueles que cometem crimes graves podem escapar à punição [federal]" (POLMMAN, op. cit, p. 933). E, note-se, nesse texto o autor está falando de situações em que o crime foi cometido por não-índio nas terras indígenas dos EUA. Neste caso, como ponderou o Juiz a quo, além do fato de que o crime ocorreu em terra indígena, tanto a vítima quanto o autor são indígenas.
É certo que alguém poderia alegar que, nos EUA, o regime soberano das terras dos índios nativos (e o consequente direito de punir nela que disso deriva) é tal que não poderia servir como parâmetro para um caso brasileiro. Mas me permito citar outro exemplo, da Austrália, envolvendo aborígenes, estes que não têm qualquer proteção constitucional nos seus direitos.
Em texto publicado também de 2004, Agnes T. M. Schreiner abordava a tendência de inserção dos elementos multiculturais no direito penal australiano:
A retribuição aborígene ao comportamento criminoso, conhecido em inglês aborígene como 'retorno' (payback), é agora reconhecido no direito penal australiano. O direito penal concedeu-lhe um lugar dentre o conjunto de penas alternativas e sanções existentes, sob o título de "punição aborígene", promovendo-a assim ao status de medida multicultural. A inclusão de um costume jurídico aborígene no que é considerado o direito oficial parece ser um passo na direção do pluralismo jurídico. [...] o "retorno" é um dispositivo que só serve para demonstrar a flexibilidade do sistema jurídico dominante; é uma contribuição importante para a tendência que prevalece em muitos sistemas jurídicos modernos para mais formas de punição alternativas e menos aprisionamentos incondicionais.
Neste caso, o juiz com o seu intento de traduzir a punição aborígene em uma 'punição alternativa' visa também proteger-se contra uma potencial violação do princípio ne bis in idem, que impede a dupla punição por um crime cometido.
E veja-se, no direito aborígene, a punição criminal ("retorno") ocorre através de um "julgamento" sob a forma de um duelo organizado pela comunidade, realizado logo após o incidente, em que as partes em conflito (o ofensor e a vítima ou os parentes desta) desafiam uns aos outros para um combate de dardos e lanças, sendo que o resultado pode ser favorável ao ofensor.
No presente caso, vê-se que as penas alternativas impostas pela comunidade ao apelado não têm nada de medievais, mas, ao contrário, em muito se parecem com penas restritivas de direitos, ao disporem sobre limitação de se ausentar do seu local de domicílio, não poder comercializar sem autorização etc. Não houve qualquer afronta ao art. 57 do Estatuto do Índio, pois não são revestidas de caráter cruel ou infamante. E não se tem aqui caso de pena de "banimento comunitário", considerado o mais grave dentre as etnias desta região, mas apenas de deslocamento compulsório do apelado de uma comunidade para outra, por prazo determinado. Inclusive, o prazo poderá ser abreviado, se o apelado demonstrar à comunidade bom comportamento na "execução da pena".
Os exemplos do direito comparado trazidos à baila não são aleatórios. Estados Unidos e Austrália são dois dos países que votaram contrariamente à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, a qual contou com voto favorável do Brasil.
Se a assinatura de dita Declaração traz para o Brasil um compromisso apenas moral, a assinatura ratificação da Convenção 169 da OIT - Sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989 traz um compromisso, além de moral, jurídico. Internalizada através do Decreto 5.051/2004, esta Convenção traz em seu art. 9º (citado na Sentença) o seguinte:
Artigo 9º
1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
O art. 10, 2, dessa Convenção chega a referir que "Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento", tal como ocorreu na espécie.
Sem necessariamente discordar do Magistrado sentenciante de que a Convenção 169 da OIT seria um tratado de direitos humanos, entendo que isso remete a um debate que permanece ainda em aberto. Sou inclinado a concordar com isso, e, consequentemente, que é dotada de supralegalidade (não podendo ser formalmente constitucional, visto que não foi incorporada sob o rito previsto no § 3º do art. 5º, da CF), pois a Convenção em seu preâmbulo lembra dos "termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da discriminação", como que querendo vincular os direitos indígenas aos direitos humanos, mas o fato é que ainda não há um claro posicionamento nem jurisprudencial nem doutrinário sobre o assunto.
De outro lado, não resta dúvida quanto à normatividade dessa Convenção, que, uma vez ratificada pelo Brasil, vincula-o e reclama o devido cumprimento, de acordo com as normas gerais contidas na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969.
Ainda sobre a Convenção 169, eu não poderia deixar de referir o oportuno precedente havido na Guatemala, em 2003, bastante semelhante a este sob exame. No caso guatemalteco, a Fiscalía del Ministério Público (que funciona como custos legis), requereu perante o Juízo Criminal do Departamento de Totonicapan um Requerimiento de Sobreseimiento da ação penal intentada contra três indivíduos acusados roubo circunstanciado (robo agravado) no Cantón Chiyax do Município e Departamento de Totonicapán, região habitada por descendentes maias. O Juiz Edgar Manfredo Roca Canet, considerando que a comunidade havia adotado medidas punitivas próprias antes da chegada da Polícia Nacional, e considerando que o Estado da Guatemala é signatário da Convenção 169 da OIT, concluiu:
[...] Em virtude do que restou explícito, de que a Convenção 169 está vigente em nossa legislação e que não contradiz nem é incompatível com a Constituição, como ficou assentado na Opinião da Corte de Constitucionalidade, a qual manifestou: "Esta Corte entende que a Convenção 169 analisada não contradiz o disposto na Constituição e é um instrumento internacional complementar que vem desenvolver disposições programáticas [...] o que não se opõe, mas, ao contrário, consolida o sistema de valores projetados no texto constitucional
[...] E ao analisar os documentos datadas de 25 de junho do ano de 2003, subscrita pelas autoridade comunitárias de Chiyax, deste Município e Departamento, se conclui na mesma através da sanção nela descrita, que não contraria disposições relativas ao Direito Internacional em matéria de Direitos Humanos, nem à Constituição Política da República da Guatemala, pelo que se torna pertinente sua aprovação e reconhecimento legal, e com base em tal expediente e em considerações de fato e de direito expostas anteriormente, as quais devem ser analisadas conjuntamente com os princípios de não intervenção ou de mínima intervenção do direito penal, que estabelece em essência que o mesmo deve intervir em Ultima Ratio, quer dizer, quando as demais instâncias legais houverem fracassado, coisa que não ocorreu no presente caso, já que se deu uma efetiva e legal aplicação do Direito Indígena na solução do presente conflito, e ao concatenar-se dito princípio com o do NON BIS IN IDEM, o qual em essência estabelece que uma pessoa não pode ser julgada mais de duas vezes pelo mesmo fato, e que ao se aplicar também uma sanção oficial das normas contidas no Código Penal se estaria contrariando dito princípio diretivo [...] resulta clara a impossibilidade material de julgar e [...] resta declarar no presente caso a Falta de Legitimidade no exercício da ação penal pública por parte do Ministério Público, por ausência do monopólio da ação, já que a mesma foi assumida integralmente pelas autoridades comunitárias da comunidade de Chiyax, que se valeram da aplicação do seu direito indígena, o qual impede por seu turno o exercício jurisdicional deste Tribunal [de 1º instância] já que previamente existente uma solução alternativa do conflito [...] e tomando em conta que o propósito o Julgador neste caso foi que os usos e costumes das diversas comunidades étnicas e os processos de solução alternativa de conflitos devem ser considerados [...] pertinente resulta declarar procedente o Requerimiento de Sobreseimiento formulado pela Fiscalía del Ministerio Publico local, devendo cessar toda medida de coerção decretada em desfavor dos acusados [...].
Firme na Convenção 169 da OIT, bem assim no conhecido art. 231 da Constituição Federal, e tomando por base a experiência comparada (conforme o permite o art. 4º da LINDB), entendo como correta a decisão em 1ª instância, ressalvadas as considerações sobre parte da justificativa nela adotada, como anotei, o que, em todo caso, nos leva à mesma conclusão.
Ante o exposto, considerando afastada a jurisdição estatal com o julgamento do fato pela comunidade indígena concernida, sob pena de se acarretar bis in idem, voto pelo desprovimento do recurso de apelação ministerial, mantendo inalterada a sentença.
Boa Vista, 18 de dezembro de 2015.
Des. MAURO CAMPELLO
Relator
E M E N T A
APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO. CRIME PRATICADO ENTRE INDÍGENAS NA TERRA INDÍGENA MANOÁ/PIUM. REGIÃO SERRA DA LUA, MUNICÍPIO DE BONFIM-RR. HOMICÍDIO ENTRE PARENTES. CRIME PUNIDO PELA PRÓPRIA COMUNIDADE (TUXAUAS E MEMBROS DO CONSELHO DA COMUNIDADE INDÍGENA DO MANOÁ). PENAS ALTERNATIVAS IMPOSTAS, SEM PREVISÃO NA LEI ESTATAL. LIMITES DO ART. 57 DO ESTATUTO DO ÍNDIO OBSERVADOS. DENÚNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE PERSECUÇÃO PENAL. JUS PUNIENDI ESTATAL A SER AFASTADO. NON BIS IN IDEM. QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS. HIGIDEZ DO SISTEMA DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL PELA PRÓPRIA COMUNIDADE. LEGITIMIDADE FUNDADA EM LEIS E TRATADOS. CONVENÇÃO 169 DA OIT. LIÇÕES DO DIREITO COMPARADO. DECLARAÇÃO DE AUSÊNCIA DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL QUE DEVE SER MANTIDA. APELO MINISTERIAL DESPROVIDO.
- Se o crime em comento foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indígena do Manoá, os quais são protegidos pelo art. 231 da Constituição, e desde que observados os limites do art. 57 do Estatuto do Índio, que deva penas cruéis, infamantes e a pena de morte, há de se considerar penalmente responsabilizada a conduta do apelado.
- A hipótese de a jurisdição penal estatal suceder à punição imposta pela comunidade indica clara situação de ofensa ao princípio non bis in idem.
- O debate passa a ser de direitos humanos quando se têm em conta não apenas direitos e garantias processuais penais do acusado, mas também direito à autodeterminação da comunidade indígena de compor os seus conflitos internos, todos previstos em tratados internacionais de que o Brasil faz parte.
- Embora ainda em aberto o debate no direito brasileiro, existe forte inclinação, sobretudo em razão da inspiração do seu preâmbulo, para se considerar a Convenção 169 da OIT (incluindo o seu art. 9º) como um tratado de direitos humanos, portanto com status supralegal, nos termos da jurisprudência do STF.
- Se até países como os Estados Unidos e a Austrália, que votaram contra a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, têm precedentes reconhecendo a autonomia do jus puniendi de seus povos autóctones em relação ao direito de punir do Estado, razoavelmente se conclui que esse reconhecimento também se impõe ao Brasil.
- Declaração de ausência do direito de punir do Estado mantida.
- Apelo desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos da Apelação Criminal nº 0090.10.000302-0, em que são partes as acima indicadas, decide a Turma Criminal da Câmara Única do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, conhecer e negar provimento ao apelo, nos termos do Voto do Relator.
Estiveram presentes à Sessão os eminentes Desembargadores Ricardo Oliveira e Leonardo Cupello. Também presente o ilustre representante do Ministério Público.
Sala das Sessões do egrégio Tribunal de Justiça de Roraima, aos dezoito dias do mês de dezembro do ano de dois mil e quinze.
Des. MAURO CAMPELLO
Relator
RESUMO ESTRUTURADO
APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO. CRIME PRATICADO ENTRE INDÍGENAS NA
TERRA INDÍGENA MANOÁ/PIUM. REGIÃO SERRA DA LUA, MUNICÍPIO DE BONFIM-RR.
HOMICÍDIO ENTRE PARENTES. CRIME PUNIDO PELA PRÓPRIA COMUNIDADE (TUXAUAS E
MEMBROS DO CONSELHO DA COMUNIDADE INDÍGENA DO MANOÁ). PENAS
ALTERNATIVAS IMPOSTAS, SEM PREVISÃO NA LEI ESTATAL. LIMITES DO ART. 57
DO ESTATUTO DO ÍNDIO OBSERVADOS. DENÚNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
IMPOSSIBILIDADE DE PERSECUÇÃO PENAL. JUS PUNIENDI ESTATAL A SER
AFASTADO. NON BIS IN IDEM. QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS. HIGIDEZ DO
SISTEMA DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL PELA PRÓPRIA COMUNIDADE. LEGITIMIDADE
FUNDADA EM LEIS E TRATADOS. CONVENÇÃO 169 DA OIT. LIÇÕES DO DIREITO
COMPARADO. DECLARAÇÃO DE AUSÊNCIA DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL QUE DEVE
SER MANTIDA. APELO MINISTERIAL DESPROVIDO.
- Se o crime em comento
foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indígena do Manoá,
os quais são protegidos pelo art. 231 da Constituição, e desde que
observados os limites do art. 57 do Estatuto do Índio, que deva penas
cruéis, infamantes e a pena de morte, há de se considerar penalmente
responsabilizada a conduta do apelado.
- A hipótese de a jurisdição
penal estatal suceder à punição imposta pela comunidade indica clara
situação de ofensa ao princípio non bis in idem.
- O debate passa a
ser de direitos humanos quando se têm em conta não apenas direitos e
garantias processuais penais do acusado, mas também direito à
autodeterminação da comunidade indígena de compor os seus conflitos
internos, todos previstos em tratados internacionais de que o Brasil faz
parte.
- Embora ainda em aberto o debate no direito brasileiro,
existe forte inclinação, sobretudo em razão da inspiração do seu
preâmbulo, para se considerar a Convenção 169 da OIT (incluindo o seu
art. 9º) como um tratado de direitos humanos, portanto com status
supralegal, nos termos da jurisprudência do STF.
- Se até países
como os Estados Unidos e a Austrália, que votaram contra a Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, têm
precedentes reconhecendo a autonomia do jus puniendi de seus povos
autóctones em relação ao direito de punir do Estado, razoavelmente se
conclui que esse reconhecimento também se impõe ao Brasil.
- Declaração de ausência do direito de punir do Estado mantida.
TJRR (ACr 0090.10.000302-0, Câmara Única, Rel. Des. MAURO CAMPELLO, julgado em 18/12/2015, DJe: 17/02/2016)