Processo número: 0010.15.822448-4


CÂMARA CÍVEL - SEGUNDA TURMA

APELAÇÃO CÍVEL Nº 0010.15.822448-4 - BOA VISTA/RR
APELANTE: O ESTADO DE RORAIMA
PROCURADOR DO ESTADO: DR. TEMAIR CARLOS DE SIQUEIRA - OAB/RR 658-P
APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DE RORAIMA
RELATOR: DES. JEFFERSON FERNANDES



RELATÓRIO

Trata-se de Apelação Cível interposta em desfavor da r. sentença proferida pelo douto Juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Boa Vista, nos autos da ação civil pública n.º 0822448-63.2015.8.23.0010, o qual julgou parcialmente procedente o pedido, para condenar o Estado de Roraima a fornecer regularmente o medicamento ZOLADEX (GOSSERRILINA) na quantidade prescrita, aos pacientes VANI DA SILVA ANDRADE e SÔNIA GONÇALVES DASILVA, bem como determinou o sequestro da quantia informada no EP 24, autorizando, ainda, a expedição de alvará para imediado cumprimento da sentença.
Em suas razões recursais, aduziu a parte Apelante, em síntese, que o medicamento requerido pertence ao Grupo 1B, ou seja, é medicamento financiado com transferência de recursos financeiros pelo Ministério da Saúde; que os documentos colacionados ao processo virtual demonstram que o Estado vem se esforçando para assegurar o fornecimento do medicamento requerido pelo autor; e que a aquisição do ZOLADEX não foi possível em razão da licitação ter sido fracassada.
Afirmou, ainda, que mesmo sem ter sido compelido judicialmente, o Estado de Roraima, através da Secretaria de Saúde, já vinha buscando meios para aquisição do medicamento solicitado, conforme comprova os documentos acostados aos autos (EP 15 e 22); e que o medicamento  ZOLADEX não consta da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME, de modo que não se poderia obrigar os entes públicos a fornecê-lo.
Defendeu também que via de regra não cabe ao paciente escolher a modalidade do medicamento; que o paciente poderia ter optado por outro medicamento que lhe atendesse; que diante da escassez de recursos deve o gestor público pautar-se nos princípios da economicidade das ações e do custo-benefício dos tratamentos; e que o art. 196 da CF, ao assegurar o direito à saúde, busca a efetivação de políticas públicas que alcancem toda a coletividade, e não com situações individualizadas, como na espécie, em que o autor busca o fornecimento de medicamento que não faz parte da lista do SUS.
Aduziu, ainda, que não há norma legal expressa impondo ao Estado o dever de fornecer gratuitamente à população todo e qualquer medicamento prescrito por seus médicos para o tratamento de problemas de saúde; que no afã de distribuir responsabilidades entre as três esferas políticas quanto ao financiamento racional dos medicamentos, foi realizado o Pacto pela Saúde, através da Portaria n.º 1.318/GM, de 23 de julho de 2002; que tal pacto prevê que os medicamentos de dispensação excepcional são de responsabilidade do Estado; e que o medicamento pretendido não se encontra padronizado pelo Ministério da Saúde, escapando da listagem de medicamentos de fornecimento obrigatório pelo Estado.
Defendeu, por fim que o SUS possui uma divisão de atribuições, em que o fornecimento de medicamentos fica a cargo dos Municípios e o repasse dos recursos financeiros fica a cargo da União, bem como que apenas supletivamente fica a cargo dos Estados a aquisição de dispensação dos medicamentos.
Requereu a reforma da sentença de piso, a fim de que seja declarada a inexistência do dever jurídico de fornecimento do medicamento por parte do Estado.
A parte Apelada apresentou contrarrazões no EP n.º 50, requerendo a manutenção da sentença de piso.
Instado a se manifestar, o douto Ministério Público Graduado exarou parecer às fls. 06/10, opinando pelo improvimento do recurso.
Eis o breve relato.
Inclua-se o feito em pauta de julgamento.
Boa Vista (RR), em 16 de janeiro de 2017.

Jefferson Fernandes da Silva
Desembargador Relator



VOTO

Presentes os requisitos de admissibilidade. Conheço do recurso.
Como já aduzido no relatório, trata-se de Apelação Cível interposta em desfavor da r. sentença proferida pelo douto Juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Boa Vista, nos autos da ação civil pública n.º 0822448-63.2015.8.23.0010, o qual julgou parcialmente procedente o pedido, para condenar o Estado de Roraima a fornecer regularmente o medicamento ZOLADEX (GOSSERRILINA) na quantidade prescrita, aos pacientes VANI DA SILVA ANDRADE e SÔNIA GONÇALVES DASILVA, bem como determinou o sequestro da quantia informada no EP 24, autorizando, ainda, a expedição de alvará para imediado cumprimento da sentença.
Pois bem. Após análise dos autos e das razões recursais, tenho que o presente recurso não merece provimento.
Com efeito, a garantia do direito à saúde é dever do Estado, devendo ser compreendido tal expressão no seu sentido lato, ou seja, União, Estados e Municípios, conforme comando constitucional (CF/88: art. 196).
Assim sendo, nas causas envolvendo o direito à saúde dos cidadãos, os entes federados são solidariamente responsáveis. Neste sentido, o Excelso Supremo Tribunal Federal já firmou compreensão:
(...) O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.  (STF, 2ª Turma, RE-AgR nº 393175/RS, Rel. Min. Celso de Melo, DJU 02.02.2007). (sem grifos no original).
Para reafirmar a solidez de tal argumento, destaco outros arestos do Excelso STF na mesma linha:
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. LEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. OBRIGAÇÃO SOLÍDARIA ENTRE OS ENTES DA FEDERAÇÃO EM MATÉRIA DE SAÚDE. AGRAVO IMPROVIDO. I - O Supremo Tribunal Federal, em sua composição plena, no julgamento da Suspensão de Segurança 3.355-AgR/RN, fixou entendimento no sentido de que a obrigação dos entes da federação no que tange ao dever fundamental de prestação de saúde é solidária. II - Agravo regimental improvido. (AI 823521 RS. Min. RICARDO LEWANDOWSKI. 15/02/2011. Primeira Turma. PUBLIC 04-03-2011) (Sem grifos no original).
DESPESAS HOSPITALARES – MEDICAMENTOS – INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS – RESPONSABILIDADE DO ESTADO (GÊNERO) – RECONHECIMENTO PELA CORTE DE ORIGEM – AGRAVO DESPROVIDO. 1. O acórdão prolatado pela Corte de origem surge harmônico com a Constituição Federal. O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação". Reclamam-se do Estado (gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da segurança pública, cobertos, em termos de receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínimo de conforto suficiente a atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem. 2. Conheço deste agravo e o desprovejo. 3. Publiquem. (RE 628422 SE. DJe-090. Min. CÁRMEN LÚCIA. PUBLIC 16-05-2011.) (Sem grifos no original).
Não se pode olvidar que a proteção à saúde, além de direito social, consiste em direito fundamental do ser humano, indissociável do direito à vida, igualmente assegurado por força da Constituição Federal (arts. 5º e 6º).
É, pois, norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, a teor do disposto no artigo 5º, § 1º, da Lei Magna, independente de qualquer ato legislativo ou previsão orçamentária, mas apenas de efetivação pela Administração Pública.
Assim, os artigos 196 e seguintes, da Constituição Federal, dispõem que a saúde é um direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Deste modo, tendo como fundamento o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF/88: art. 1º, inc. III), pilar da República, emerge o dever do Estado em fornecer os medicamentos indispensáveis ao restabelecimento da saúde dos cidadãos hipossuficientes.
Isto porque, a dignidade da pessoa humana é o valor supremo que deve nortear a interpretação e a aplicação de toda a ordem normativa, sobretudo dos direitos e das garantias fundamentais.
Ao enfrentar a questão, o Colendo STJ assim decidiu:
DIREITO LÍQUIDO E CERTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. HEPATITE C. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. [...] 1. A ordem constitucional vigente, em seu art. 196, consagra o direito à saúde como dever do Estado, que deverá, por meio de políticas sociais e econômicas, propiciar aos necessitados não ‘qualquer tratamento’, mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento. 2. Sobreleva notar, ainda, que hoje é patente a idéia de que a Constituição não é ornamental, não se resume a um museu  de  princípios,  não é meramente um  ideário;  reclama efetividade  real de  suas normas. Destarte, na aplicação  das  normas  constitucionais,  a  exegese  deve  partir  dos princípios  fundamentais,  para  os  princípios  setoriais.  E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio  fundante  da  República  que  destina  especial proteção a dignidade da pessoa humana[...]. (Recurso em Mandado de Segurança nº 24.197/PR (2007/0112500-5) - Relator: Ministro Luiz Fux - Data do Julgamento: 04/05/2010). (Sem grifos no original).
Friso que a omissão do Poder Público em fornecer tratamento de saúde indispensável ao restabelecimento de pessoa enferma constitui flagrante ofensa a Constituição Federal, uma vez que a saúde e a vida são bens jurídicos constitucionalmente tutelados.
Pacífico que é dever do Estado fornecer medicamento aos cidadãos desprovidos de recursos, conforme o citado artigo 196, da Constituição Federal, independentemente de entraves burocráticos oriundos de atos infralegais do Poder Executivo que não são aptos a restringir o alcance de normas constitucionais.
Com efeito, a proteção à dignidade humana não pode ser aviltada pela adoção de políticas públicas que desrespeitam a Constituição Federal.
De fato, não se pode pretender isentar a Administração dos seus deveres constitucionais, sob a alegação de falta de disponibilidade orçamentária.
Isto porque, os princípios da separação dos poderes e da reserva orçamentária não constituem obstáculos à tutela jurisdicional em face do Poder Público.
Sobre o tema, convém transcrever compreensão esposada no STJ:
ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO. 1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade do administrador. 2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido.   (RECURSO ESPECIAL Nº 493.811 - SP (2002/0169619-5) RELATORA : MINISTRA ELIANA CALMON - Data do Julgamento: 11/11/2003). (Sem grifos no original).
É dever do Poder Público dar cumprimento às normas previstas na Constituição Federal, por tratar de regras vinculadas, cuja efetividade e aplicação são imediatas.
É a aplicação das normas constitucionais programáticas na observância do princípio da reserva do possível.
Por derradeiro, cumpre observar que o medicamento em questão foi receitado por profissional da área médica, somente podendo ser substituído com o aval do respectivo profissional, pois este é quem detém os conhecimentos necessários acerca das necessidades dos pacientes que acompanha.
Não se pode olvidar, ainda, que a parte Apelante não ofereceu alternativas quanto à aquisição de outro medicamento que pudesse substituir o fármaco postulado na presente ação civil pública.
Nesse ínterim, o não provimento do recurso é medida que se impõe.
Diante do exposto, com fundamento no inciso XXXV, do artigo 5º, e, artigo 6º, c/c, artigo 196, todos da Constituição Federal de 1988, em consonância com o parecer ministerial, conheço e nego provimento ao recurso interposto.
É como voto.
Boa Vista (RR), em 02 de fevereiro de 2017.

Jefferson Fernandes da Silva
Desembargador Relator



EMENTA

CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. RESPONSABILIDADE CONCORRENTE DOS ENTES FEDERATIVOS.  IMPRESCINDIBILIDADE DO FÁRMACO COMPROVADA. DEVER DO ESTADO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO, EM CONSONÂNCIA COM PARECER DO MP.



ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os membros integrantes da Segunda Turma Cível, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, à unanimidade, em conhecer e negar provimento ao Apelo, nos termos do voto do Relator.
Participaram da Sessão de Julgamento os Senhores Desembargadores Jefferson Fernandes (Relator), Elaine Cristina Bianchi (Presidente) e Mozarildo Cavalcanti (Julgador), bem como o representante do Parquet.
Sala das sessões do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, aos dois dias do mês de fevereiro do ano de 2017.

Jefferson Fernandes da Silva
Desembargador Relator



RESUMO ESTRUTURADO
CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. RESPONSABILIDADE CONCORRENTE DOS ENTES FEDERATIVOS.  IMPRESCINDIBILIDADE DO FÁRMACO COMPROVADA. DEVER DO ESTADO. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO, EM CONSONÂNCIA COM PARECER DO MP.

TJRR (AC 0010.15.822448-4, Segunda Turma Cível, Rel. Des. JEFFERSON FERNANDES DA SILVA, julgado em 02/02/2017, DJe: 09/02/2017)