Processo número: 0812541-59.2018.8.23.0010


CÂMARA CRIMINAL

Apelante: L. da R. e S. S.
Defensor Público: DEUSDEDITH FERREIRA ARAUJO - OAB 550N-RR e HENRIQUE MARAVALHA MOLINA - OAB 1546N-RR
Apelado: C.T.R.
Defensor Público: Terezinha Muniz de Souza Cruz - OAB 257N-RR



RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação (88.1) interposto por L. da R. e S. S. contra a sentença proferida pelo Juízo do 2º Juizado de Violência Doméstica da Comarca de Boa Vista (75.1), que, em Ação Cautelar com pedido liminar de Medida Protetiva de Urgência na forma da Lei n.° 11.340/2006, confirmou as medidas protetivas liminarmente concedidas (6.1). Em síntese: busca e apreensão de arma de fogo; proibição de aproximação da vítima a menos de 200 metros e de fazer contato por qualquer meio de comunicação com a vítima (6.1).

Em suas razões (88.1), a defesa requer a revogação das medidas protetivas de urgência, sustentando sua desnecessidade, alegando não haver prova de ameaça ou violência contra a vítima, pois ela mesma desrespeitou as medidas determinadas, tanto que foi à casa do apelante, bem como fez contato telefônico com ele. Acrescenta
que a palavra da vítima não possui credibilidade e não há demonstração de sua verossimilhança por outras provas. Subsidiariamente, pede a revogação da restrição quanto ao porte/uso de arma de fogo, tendo em vista que o apelante é policial civil e por isso precisa da arma para sua proteção e de sua família.

Em contrarrazões, a defesa da vítima requereu o desprovimento do apelo (95.1).

Parecer da Procuradoria de Justiça pela manutenção da sentença (19.1).

É o relatório.

Nos termos do art. 93, III, do Regimento Interno, a hipótese em julgamento dispensa revisão.



VOTO

Presentes os pressupostos de admissibilidade, admito o processamento do recurso.

A defesa a defesa requer a revogação das medidas protetivas de urgência, sustentando sua desnecessidade e subsidiariamente pede a revogação da restrição quanto ao porte/uso de arma de fogo, tendo em vista que o apelante é policial civil e por isso precisa da arma para sua proteção e de sua família.

Na sentença, foram aplicadas as seguintes medidas protetivas em favor da vítima:

1) Busca e Apreensão de arma de fogo, em todas as dependências do local de moradia (Rua d. G., nº  – P.), veículo(s), etc., e correspondente suspensão da posse e/ou do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826/2003, eventualmente havendo arma e/ou registro de arma de posse do requerido, lavrando-se, no caso de apreensão positiva, o correspondente auto junto a autoridade policial.
2) Proibição de aproximação da vítima, observado o limite mínimo de distância entre a(s) pessoa(s)ora protegida(s) e o agressor de 200 (duzentos) metros.
3) Proibição de frequentar a residência, eventual local de trabalho e outros locais de usual frequentação da vítima.
4) Proibição de manter contato com a requerente, bem como de enviar e/ou divulgar qualquer conteúdo ameaçador ou ofensivo à sua integridade moral e psicológica (à honra e à intimidade), por qualquer meio de comunicação, inclusive de interpor pessoa(s) para fazê-lo e/ou para promover qualquer outra agressão/coação, em revide/represália, sob sua ordem direta, ou indiretamente, sob pena de corresponsabilização, civil/criminalmente, nos termos de lei.

A necessidade da aplicação dessas medidas protetivas de urgência em favor da vítima está demonstrada pela narrativa dos fatos, conforme se verifica da ocorrência policial registrada (1.1, págs. 6/7), da qual consta a situação de risco a que foi submetida a ofendida. Confira-se seu depoimento:

Compareceu nesta delegacia especializada da mulher a Sra [C. T. R.], dados pessoais já informados no BO para comunicar que vem perdendo a tranquilidade e o sossego além de ser agredida verbalmente pelo denunciado principalmente quando o mesmo fica bêbado que seu ex- companheiro de nome [L. da R. S. e S.]. A declarante relata que conviveu com o denunciado, por aproximadamente cinco anos e que desse relacionamento não tiveram filhos e a declarante está separada do denunciado há 06 meses e mesmo assim o denunciado não para de perturbar e ofender com xingamentos como: vagabunda, filha de uma puta, puta e vadia. QUE desde o início do relacionamento o denunciado se mostrou ciumento com a declarante, QUE o denunciado sempre fica na esquina da rua da declarante em seu veículo Fiat Bravo, vigiando a declarante. QUE no dia 11 de maio de 2018 o namorado da declarante saiu de sua casa e foi quando o denunciado apareceu no portão encarando a declarante com uma arma de fogo na cintura e segurando o cabo da arma, dando a intenção de que se a declarante falasse alguma coisa o mesmo atiraria. QUE a declarante informa que o denunciado possui duas armas uma da Polícia e a outra seria um revólver ilegal em sua residência, que de imediato a declarante pegou a sua moto e fugiu em sentido de pedir ajuda, QUE de imediato o denunciado começou a prossegui-la com carro, QUE segundo a declarante o denunciado só não conseguiu alcançá-la devido que o denunciado possui deficiência em seu braço direito e com essa deficiência ele tem dificuldades em dirigir. QUE a declarante conseguiu chegar em uma delegacia localizada no bairro Asa Branca antiga DEAM, e mesmo assim o denunciado ficou na rua esperando a declarante. QUE esta situação gerou medo e pânico para a declarante. QUE o denunciado não aceita o fim do relacionamento e passou a persegui-la. QUE essas agressões estão lhe causando transtornos psicológicos e pavor. QUE mais tarde o denunciado ligou ameaçando a declarante dizendo que não iria deixar ela em paz nunca, e que não adiantaria ela pedir a tal de medida protetiva para o juiz pois ele iria pegar a medida protetiva do juiz e que em seguida limparia a sua bunda com a ordem do juiz. QUE o Denunciado não é usuário de drogas e que o mesmo é Policial Civil atualmente lotado na Secretaria de Segurança Pública DEINT. QUE não sabe informar se o denunciado já foi preso ou responde por crimes cometidos em Roraima ou em outros Estados. QUE esse é o primeiro BO que faz conta o denunciado que em outras oportunidades já foi ameaçada de morte e sofreu agressões verbais por parte do denunciado. QUE não quer mais se relacionar com o denunciado, nem como amigo, pois o denunciado não merece confiança;

Verifica-se pelo depoimento da vítima que o apelante a xingou, perseguiu-a de carro até a delegacia onde ela entrou e nem assim se intimidou, pois permaneceu na rua em atitude ameaçadora. Além disso, debochou da hipótese de aplicação de medidas protetivas eventualmente deferidas pelo Judiciário, afirmando que não iria cumpri-las. Some-se a tudo isso o fato de possuir arma de fogo e andar armado, uma vez que é policial civil.

Nesse contexto, as medidas foram pleiteadas pela vítima (1.1, págs. 2/3) e deferidas pelo juízo (6.1).

As medidas protetivas são tutelas de urgência autônomas, de natureza cível e de caráter satisfativo, que devem ser aplicadas enquanto houver necessidade para garantir a integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial da mulher vítima de violência doméstica e familiar, de modo que estão desvinculadas do inquérito policial que lhe deu origem, bem como de eventuais processos cíveis ou criminais.

No caso, demonstrada a necessidade das medidas protetivas deferidas em favor da vítima, deve ser mantida a sentença que as deferiu.

Acrescento a este voto os fundamentos da i. Procuradoria de Justiça, que bem analisou a questão, incluindo o pedido de revogação da restrição quanto ao porte/uso de arma de fogo. Confira-se:

Embora o Apelante insurja-se contra a decisão, alegando que a verdade foi falseada, tem-se que, no caso desses autos, especialmente por se tratar de processo cautelar, o que ocorreu foi o acolhimento emergencial da vítima, não se observando qualquer mácula nos procedimentos determinados pelo juízo primevo. Vetusto que a Lei 11.340/06 deve ser interpretada respeitando-se sua especialidade, pois essa foi a intenção do legislador. Conferiu-se grande peso ao depoimento inicial da vítima de violência doméstica e familiar para garantir a proteção máxima às mulheres, que tenham a coragem de insurgirem-se contra a violência contra elas perpetrada. E é, nesse sentido, em conformidade com a Lei Maria da Penha, que a jurisprudência e doutrina majoritárias são assentes em afirmar que a palavra da vítima deve bastar para o convencimento inicial da necessidade em obter medidas protetivas de urgência; tanto é assim que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacificado quanto ao tema:

PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. AMEAÇA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. TRANCAMENTO. INVIABILIDADE. MEDIDAS PROTETIVAS. PROPORCIONALIDADE E ADEQUAÇÃO. MANUTENÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1. Nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal ou inquérito policial por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, o que não ocorreu, no caso. 2. O Juízo da Comarca de Andradina/SP deferiu a aplicação de medidas protetivas de urgência em favor da vítima, esposa do recorrente, consistentes no afastamento do agressor do lar conjugal, na imposição de ordem de distanciamento e na proibição de contato, dada a suposta prática do crime de ameaça. 3. Caberá à autoridade policial investigar os fatos e, após, remeter ao Ministério Público Estadual, a quem caberá identificar se há ou não justa causa para o oferecimento da ação penal, pois não há como acolher de pronto a tese defensiva segundo a qual não houve o crime em questão, sobretudo pela importância da palavra da vítima nos delitos de violência doméstica. No caso, aliás, há declarações prestadas não só pela vítima, como também por seu filho, acostadas pela própria defesa em suas razões recursais. 4. "Esta Corte já se manifestou no sentido de que as medidas protetivas impostas na hipótese de prática de violência doméstica e familiar contra a mulher possuem natureza satisfativa, motivo pelo qual podem ser pleiteadas de forma autônoma, independentemente da existência de outras ações judiciais." (AgRg no REsp 1783398/MG, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 2/4/2019, DJe 16/4/2019). 5. O Tribunal a quo assentou que o caso envolve relações íntimas de afeto entre o recorrente e a vítima do delito de ameaça, a justificar a aplicação das medidas previstas na Lei n. 11.343/06, na defesa da ofendida. 6. "Rever o entendimento das instâncias ordinárias, para afastar a aplicação das medidas protetivas aplicadas, demandaria, necessariamente, amplo revolvimento da matéria fático-probatória, procedimento que, a toda evidência, é incompatível com a estreita via do mandamus." (HC 455.232/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 6/11/2018, DJe 13/11/2018). 7. Recurso em habeas corpus desprovido. (RHC 106.214/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 15/08/2019, DJe 20/08/2019). (...) Ademais, o fato de a vítima ter ido à frente da casa do Apelante ou ter telefonado para a filha dele não constituem óbice ao deferimento de medidas protetivas para salvaguardar sua integridade física e psíquica nem afastam a violência outrora praticada pelo agressor. Por fim, acerca do pedido subsidiário de revogação da medida relativa à autorização do apelante [L.] para portar/possuir arma de fogo quando fora de serviço, entende-se que ela não deve ocorrer, pelo menos nesse momento. À guisa de esclarecimentos, frise-se que esta Procuradoria de Justiça tem o conhecimento de que medidas protetivas possuem natureza verdadeiramente satisfativa, não têm prazo de eficácia e podem perdurar enquanto a situação de risco à integridade física ou moral da vítima persistir. Dada sua feição inibitória, visam garantir proteção à pessoa ofendida, nos termos da Lei Maria da Penha. Não se pode confundir a ausência de prazo máximo de vigência com sua característica de temporariedade, devendo, pois, ter em mente que possuem caráter provisório, prolongando-se no tempo enquanto perdurar a situação ensejadora do risco à vítima. (...) Diante disso, dadas as circunstâncias dos autos, na qual o Apelante se trata de servidor público da Polícia Civil e já se encontra, desde 30/05/2018, conforme EP 33.1, sem portar ou possuir arma de fogo fora do serviço; e, também, pelo transcurso de mais de 18 (dezoito) meses sem notícia de novos episódios envolvendo as partes, verifica-se que essa medida deve ser revista pelo Juízo de origem, para que não se torne desproporcional e distante de sua precípua finalidade, sendo mais gravosa do que uma reprimenda cominada em caso de eventual condenação.

De fato, descabida, neste momento e neste processo, a discussão a respeito da veracidade das declarações da vítima, que conta com especial proteção pela Lei 11.340/2006 e sua palavra possui especial valor probatório em hipóteses de violência doméstica, porque nem sempre os fatos são presenciados por testemunhas ou registrados por outros meios de prova.

No que se refere ao pedido de revogação da suspensão do porte de arma de fogo, deve ser formulado perante o juízo de origem, que deverá analisar se a medida ainda é necessária, considerando o tempo decorrido desde a sua concessão e a existência ou não de novos fatos envolvendo as partes, conforme bem destacado pela Procuradoria de Justiça.

Ante o exposto, em consonância com o parecer da Procuradoria de Justiça, NEGO PROVIMENTO ao recurso, mantendo integralmente a sentença.

É o voto. 



EMENTA

APELAÇÃO CÍVEL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. NECESSIDADE. POLICIAL CIVIL. PORTE DE ARMA DE FOGO. RESTRIÇÃO. APELAÇÃO DESPROVIDA.
1. Se a mulher registra ocorrência policial, noticiando perseguição e ameaças proferidas pelo seu ex-companheiro, policial civil com porte de arma de fogo, correta a decisão que defere medidas protetivas de urgência em favor dela, nos termos da Lei 11.340/2006.
2. As medidas protetivas são tutelas de urgência autônomas, de natureza cível e de caráter satisfativo, que devem ser aplicadas enquanto houver necessidade para garantir a integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial da mulher vítima de violência doméstica e familiar, de modo que estão desvinculadas do inquérito policial que lhe deu origem, bem como de eventuais processos cíveis ou criminais.
3. Demonstrada a necessidade das medidas protetivas deferidas em favor da vítima, deve ser mantida a sentença que as deferiu.
4. As declarações da vítima contam com especial proteção pela Lei 11.340/2006, de modo a possuir especial valor probatório em hipóteses de violência doméstica, porque nem sempre os fatos são presenciados por testemunhas ou registrados por outros meios de prova.
5. O pedido de revogação da suspensão do porte de arma de fogo deve ser formulado perante o juízo de origem, que deverá analisar se a medida ainda é necessária, considerando o tempo decorrido desde a sua concessão e a existência ou não de novos fatos envolvendo as partes.
6. Apelação desprovida.



ACÓRDÃO

Relatados e discutidos os presentes autos de Apelação Criminal, acordam os Excelentíssimos Senhores Desembargadores integrantes da Colenda Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, à unanimidade, e em consonância com o parecer da Procuradoria de Justiça, em conhecer e negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator.

Participaram do julgamento o Desembargador Leonardo Pache de Faria Cupello e os Juízes Convocados Graciette Sotto Mayor Ribeiro e Esdras Silva Pinto (Relator), bem como o (a) representante da douta Procuradoria de Justiça.

Sala das Sessões do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, aos 17 dias do mês de dezembro do ano de dois mil e vinte e um.

Boa Vista/RR, data constante no sistema.


Juiz ESDRAS SILVA PINTO
Relator



RESUMO ESTRUTURADO
APELAÇÃO CÍVEL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. NECESSIDADE. POLICIAL CIVIL. PORTE DE ARMA DE FOGO. RESTRIÇÃO. APELAÇÃO DESPROVIDA.
1. Se a mulher registra ocorrência policial, noticiando perseguição e ameaças proferidas pelo seu ex-companheiro, policial civil com porte de arma de fogo, correta a decisão que defere medidas protetivas de urgência em favor dela, nos termos da Lei 11.340/2006.
2. As medidas protetivas são tutelas de urgência autônomas, de natureza cível e de caráter satisfativo, que devem ser aplicadas enquanto houver necessidade para garantir a integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial da mulher vítima de violência doméstica e familiar, de modo que estão desvinculadas do inquérito policial que lhe deu origem, bem como de eventuais processos cíveis ou criminais.
3. Demonstrada a necessidade das medidas protetivas deferidas em favor da vítima, deve ser mantida a sentença que as deferiu.
4. As declarações da vítima contam com especial proteção pela Lei 11.340/2006, de modo a possuir especial valor probatório em hipóteses de violência doméstica, porque nem sempre os fatos são presenciados por testemunhas ou registrados por outros meios de prova.
5. O pedido de revogação da suspensão do porte de arma de fogo deve ser formulado perante o juízo de origem, que deverá analisar se a medida ainda é necessária, considerando o tempo decorrido desde a sua concessão e a existência ou não de novos fatos envolvendo as partes.
6. Apelação desprovida.

TJRR (AC 0812541-59.2018.8.23.0010, Câmara Criminal, Rel. Juiz Conv. ESDRAS SILVA PINTO, julgado em 17/12/2021, DJe: 23/12/2021)