DOCUMENTO 1
PROCESSO
AC - Apelação Cível
08244353220188230010
RELATOR
MOZARILDO CAVALCANTI
ÓRGÃO JULGADOR:
Câmara Cível
DATA DO JULGAMENTO:
04/10/2024
DATA DA PUBLICAÇÃO:
04/10/2024
EMENTA:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SERVIÇOS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMA DE MONITORAMENTO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. OMISSÃO MUNICIPAL. INTERVENÇÃO JUDICIAL. CABIMENTO. VIOLAÇÃO À LEGISLAÇÃO E PRECEITOS CONSTITUCIONAIS. COMPETÊNCIA MUNICIPAL PARA IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMA DE MONITORAMENTO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. IGUALDADE DE TRATAMENTO ENTRE NACIONAIS E ESTRANGEIROS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS. RECURSO DESPROVIDO.
CÂMARA CÍVEL - PRIMEIRA TURMA
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0824435-32.2018.8.23.0010 ORIGEM: 1ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA APELANTE: MUNICÍPIO DE BOA VISTA - RR ADVOGADO: FLAVIO GRANGEIRO DE SOUZA - OAB 327P-RR APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE RORAIMA RELATOR: DES. MOZARILDO MONTEIRO CAVALCANTI
RELATÓRIO Trata-se de apelação cível interposta contra a sentença proferida no EP 101.1, que julgou procedente o pedido do Ministério Público para determinar ao Município de Boa Vista que, no prazo de 180 dias, elabore e execute, programa de monitoramento trimestral da população em situação de rua em seu território, com vistas a estabelecer plano de ações na área da assistência social, sob pena de multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por dia de descumprimento, a perdurar por 60 (sessenta) dias. O Município de Boa Vista alega que a sentença merece reforma, tendo em vista que: i) não analisou os argumentos defensivos do apelante e determinou obrigação não prevista em lei; ii) incompetência da Justiça Estadual para o julgamento da matéria; iii) monitoramento já realizado pelo Governo Federal; iv) confusão entre o programa de amparo com o programa de monitoramento. Requer: “I- Que seja recebido o seu recurso com efeito suspensivo, conforme determina o art. 1.012 do Código de Processo Civil;
II- Que seja reformada a r. Sentença, a fim de reconhecida a incompetência da Justiça Estadual para o julgamento da presente lide, por se tratar de matéria de competência da justiça federal, por tratar de imigração direitos humanos.
III- Caso se ultrapasse o item anterior, que a r. sentença seja reformada, a fim de que seja reconhecida a de Lei e de regulamentação legal, que determine o monitoramento trimestral da população em situação de rua no âmbito municipal.” Em contrarrazões, o Ministério Público do Estado de Roraima argumenta que a competência administrativa é do Município, não havendo ilegitimidade de parte, bem como ausência de juntada de documentos comprobatórios e, ainda que juntado, a irregularidade de juntada em sede recursal. Requer o desprovimento do recurso (EP 126.1). É o relatório. Inclua-se em pauta de julgamento eletrônico, nos termos do RITJRR. Boa Vista - Roraima. Des. Mozarildo Monteiro Cavalcanti - Relator VOTO Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso. Conforme relatado, a apelação cível foi interposta contra a sentença proferida no EP 101.1, que julgou procedente o pedido do Ministério Público para determinar ao Município de Boa Vista que, no prazo de 180 dias, elabore e execute programa de monitoramento trimestral da população em situação de rua em seu território, com vistas a estabelecer plano de ações na área da assistência social, sob pena de multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por dia de descumprimento, a perdurar por 60 (sessenta) dias. Nas razões recursais, o Município de Boa Vista alega que os argumentos de defesa não foram analisados e que houve determinação de obrigação não prevista em lei. Além disso, sustenta a incompetência da Justiça Estadual para o julgamento da matéria; alega que o monitoramento trimestral da população já é realizado pelo Governo Federal; e afirma que há confusão entre o programa de amparo com o programa de monitoramento. A sentença é a seguinte:
“(...)
FUNDAMENTAÇÃO
Com efeito, em princípio, registra-se a legitimidade ativa do Ministério Público Estadual para promover o presente feito, haja vista que a Constituição Federal, ao dispor ser função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, não estabeleceu qualquer forma de contenção de suas atribuições (art. 127, 129, inciso III). Outrossim, tratando de pedido de implementação de programa de monitoramento da população de rua para, a concessão de serviços sociais a quem deles necessitar, independentemente da condição ou não de estrangeiro, não há competência a ser atribuída à Justiça Federal. De outro giro, não há como acolher o fundamento de que eventual trabalho já realizado pela Operação Acolhida, do Governo Federal, ensejaria a perda do objeto do feito. As ações que visam a proteção de vulneráveis não se excluem mas se complementam. Convém rememorar que toda a legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos há de ser compreendida da maneira que lhes seja mais proveitosa e melhor possa viabilizar, na perspectiva da eficácia e de resultados práticos, a ratio essendi da norma e a prestação jurisdicional nela apoiada. É essa a orientação que prevalece no STJ: "Em caso de dúvida ou lacuna, a legislaç de proteção de sujeitos vulneráveis deve ser interpretada ou integrada da forma que lhes seja mais favorável, vedado ao administrador e ao juiz acrescentar, acentuar ou inferir limitações ao exercício pleno dos direitos individuais e sociais previstos na Constituição e nas leis" (REsp 1.568.331/MS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 19/12/2018). Nesse sentido, as preliminares de incompetência, ilegitimidade e perda do objeto da ação devem ser afastadas. Passa-se ao exame do mérito. Inegável saber que o regime democrático se sustenta pelo princípio da separação dos poderes, no qual cabe ao Poder Executivo planejar e executar políticas públicas voltadas ao interesse e objetivos da sociedade. Desse modo, naturalmente cabe, ao gestor público, formular seus próprios programas de ações, observando critérios de conveniência e oportunidade, que assegurem melhor qualidade de vida para a população. Ocorre que, sendo a dignidade da pessoa humana a base de todo o Estado Democrático de Direito (Art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), essa liberdade de escolha não é absoluta e deve pautar-se na proteção dos direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente. Quando o Poder Publico atua na promoção de ações governamentais deficitárias, estruturadas para se manter um ambiente injusto e desigual que ofereçam comprometimento à estabilidade social, se desvia de suafinalidade maior, que é o Estado de Direito voltado à concretização dos direitos fundamentais. Sendo o Poder Judiciário instado a se manifestar acerca da necessidade de preservação e garantia dos direitos fundamentais, pilares do Estado Democrático de Direito, atua, não como gestor da coisa pública, mas com verdadeira submissão à Constituição Federal, já que é missão do Poder Judiciário garantir a pacificação e o equilíbrio sociais. Portanto,não se pode conceber políticas públicas voltadas a proteção dos direitos e garantias fundamentais que estejam fora do controle judicial, sob pena de se legitimar, de forma sucessiva, o desequilíbrio dos princípios fundamentais que sustentam as próprias bases do Estado. A possibilidade do controle judicial de políticas pública possui precedentes no Supremo Tribunal Federal, conforme ementa colacionada a seguir: RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº 12.322/2010)– MANUTENÇÃO DE REDE DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – DEVER ESTATAL RESULTANTE DE NORMA CONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO – DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819) – COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA (RTJ 185/794-796) – A QUESTÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL: RECONHECIMENTO DE SUA INAPLICABILIDADE, SEMPRE QUE A INVOCAÇÃO DESSA CLÁUSULA PUDER COMPROMETER O NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197) – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO PODER PÚBLICO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS, ESPECIALMENTE NA ÁREA DA SAÚDE (CF, ARTS. 6º, 196 E 197)– A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” – A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO – CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219-1220) – EXISTÊNCIA, NO CASO EM EXAME, DE RELEVANTE INTERESSE SOCIAL – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (STF – AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO : ARE 745745 MG. ÓRGÃO JULGADOR: SEGUNDA TURMA. RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO. JULGAMENTO: 02/12/2014). Portanto, demonstrada a legitimidade de atuação do Poder Judiciário frente a esta demanda. Com efeito, o art. 30, da Carta Maior, previu,dentre as atribuições de competência do município, legislar em assunt de interesse local (inc. I) e suplementar, no que couber, das legislações federal e estadual (inc. II), ora no tange à responsabilidade do Estado na promoção dos diversos aspectos da dignidade humana, como saúde (art. 196), educação (art. 205), habitação (art. 182), proteção à família (art. 226) e a assistência social (art. 194 A obrigatoriedade do Município de executar planos de ação assistencial encontra previsão ainda na Lei nº 8.742/93, que dispõe sobre a organização da Assistência Social, ao prever que: Art. 15. Compete aos Municípios: […] V – prestar os serviços assistenciais de que trata o art. 23 desta lei. […] Art. 23. Entendem-se por ser socioassistenciais as atividades continuadas que visem à melhoria de vida da população e cujas ações, voltadas para as necessidades básicas, observem os objetivos, princípios e diretrizes estabelecidos nesta Lei. […] § 2o organização dos serviços da assistência social serão criados programas de amparo, entre outros: […] II – às pessoas que vivem em situação de rua. Nesse mister, a inexistência de programa satisfatório de monitoramento para atendimento básico às pessoas vulneráveis, ora em situação de rua, tem reflexos evidentes na proteção e saúde coletiva. É assunto local para o qual a municipalidade deve dar a solução. O pleito contido na demanda civil pública é coerente com a legislação, já que não há demonstração plausível de que tenha empreendido programas e condutas, ora pelo ente público municipal, de monitoramento à população em situação de rua. Destarte, conclui-se que, pelas evidencias demonstradas nos autos, é reclamável judicialmente o pleito invocado, haja vista que já existente comando constitucional da política pública correlata (art. 23, § 2º, inciso II, da Lei Orgânica da Assistência Social, Lei Federal nº 8.742/93 e art. 23, inciso X, da Constituição Federal). DISPOSITIVO Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido ministerial para determinar ao MUNICÍPIO DE BOA VISTA que, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, elabore e execute, sob pena de multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por dia de descumprimento, a perdurar por 60 (sessenta) dias, programa de monitoramento trimestral da população em situação de rua em seu território, com vistas a estabelecer plano de ações na área da assistência social. Transcorrido o prazo para recurso, certifique-se o trânsito em julgado e arquivem-se os autos. Interposta apelação, cumpra-se o disposto no art. 1.010, do CPC. Intimem-se as partes. Cumpra-se. Expedientes necessários. (...)” Não assiste razão ao apelante.
A questão da competência para a implementação de programas de monitoramento e concessão de serviços sociais à população em situação de rua deve ser analisada à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da assistência social.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 23, inciso II, a competência comum entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para "cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência". Este dispositivo deixa claro que todos os entes federativos têm a responsabilidade de atuar na implementação de políticas públicas voltadas ao atendimento das necessidades básicas da população, incluindo a população em situação de rua. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal entende pela competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios:
CONSTITUCIONAL. PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19). RESPEITO AO FEDERALISMO. LEI FEDERAL 13.979/2020. MEDIDAS SANITÁRIAS DE CONTENÇÃO À DISSEMINAÇÃO DO VÍRUS. ISOLAMENTO SOCIAL. PROTEÇÃO À SAÚDE, SEGURANÇA SANITÁRIA E EPIDEMIOLÓGICA. COMPETÊNCIAS COMUNS E CONCORRENTES E RESPEITO AO PRINCÍPIO DA PREDOMINÂNCIA DO INTERESSE (ARTS. 23, II, 24, XII, E 25, § 1º, DA CF). COMPETÊNCIAS DOS ESTADOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DAS MEDIDAS PREVISTAS EM LEI FEDERAL. ARGUIÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE.1. Proposta de conversão de referendo de medida cautelar em julgamento definitivo de mérito, considerando a existência de precedentes da CORTE quanto à matéria de fundo e a instrução dos autos, nos termos do art. 12 da Lei 9.868/1999.2. A gravidade da emergência causada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes, que devem ser cada vez mais valorizados, evitando-se o exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de COVID-19. 3. Em relação à saúde e assistência pública, a Constituição Federal consagra a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, II e IX, da CF), bem como prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF), permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, da CF); e prescrevendo ainda a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8.080/1990).4. O Poder Executivo federal exerce o papel de ente central no planejamento e coordenação das ações governamentais em prol da saúde pública, mas nem por isso pode afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotem medidas sanitárias previstas na Lei 13.979/2020 no âmbito de seus respectivos territórios, como a imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, sem prejuízo do exame da validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal editado nesse contexto pela autoridade jurisdicional competente.5. Arguição julgada parcialmente procedente. (STF - ADPF: 672 DF 0089306-90.2020.1.00.0000, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 17/09/2020, Data de Publicação: 18/09/2020) A assistência social é regulada pelo artigo 203 da Constituição Federal, que determina que a assistência social será prestada "a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social". Este dispositivo, em conjunto com o artigo 5º, caput, que assegura a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, reforça o dever do Estado de garantir o acesso aos serviços sociais a todos, inclusive aos estrangeiros, independentemente de sua condição migratória. A Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída pelo Decreto nº 7.053/2009, também estabelece diretrizes claras para a atuação dos entes federativos na promoção de direitos e na oferta de serviços à população em situação de rua. Este decreto reconhece a necessidade de monitoramento contínuo dessa população, a fim de garantir o acesso efetivo aos serviços públicos, como saúde, educação e assistência social. Por sua vez, a Lei Organica da Assistência Social detalhou o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), preconizando ser atribuição da Administração Municipal “realizar o monitoramento e a avaliaco da politica de assistência social em seu âmbito” (artigo 15, inciso VII, Lei 8.742/93).
E o art. 157 da Lei Organica do Município de Boa Vista estabelece as atribuições municipais para coordenação, execução e acompanhamento de ações de assistência social a cargo do Poder Executivo, estabelecendo, inclusive, a obrigatoriedade da elaboração de um plano de ações.
Ademais, sobre a questão da imigração, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre a igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros na concessão de direitos sociais. Em diversos precedentes, a Corte tem reafirmado que o princípio da dignidade da pessoa humana e a vedação à discriminação se aplicam indistintamente a todos que se encontrem no território nacional. No julgamento da ADPF 101, o STF reconheceu que "não pode haver discriminação na prestação de serviços públicos essenciais, sendo a nacionalidade irrelevante para a concessão de direitos fundamentais".Este Tribunal de Justiça, no julgamento do AgInst: 0000170001671 0000.17.000167-1, estabeleceu precedente no sentido de que o município tem o dever “de adotar política pública que proporcione condições mínimas para retirar das ruas e assegurar proteção a crianças venezuelanas imigrantes”: AGRAVO DE INSTRUMENTO – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – CRIANÇAS IMIGRANTES VENEZUELANAS EM ESTADO DE VULNERABILIDADE – MEDIDA PROTETIVA – DIREITOS HUMANOS MULTIDIMENSIONAIS VINCULADOS À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE, INCLUSIVE OS IMIGRANTES INDOCUMENTADOS – COMPETÊNCIA – VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE – OBRIGAÇÃO JURÍDICA DO ESTADO BRASILEIRO – DEVER QUE DERIVA, DE MODO ESPECIAL, DA OPINIÃO CONSULTIVA 21 DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (DIREITOS E GARANTIAS DE CRIANÇAS NO CONTEXTO DA MIGRAÇÃO E/OU EM NECESSIDADE DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL) – NORMAS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS TAMBÉM APLICÁVEIS À ESPÉCIE – RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS – DETERMINAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO QUE NÃO VIOLA O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E A HIGIDEZ ORÇAMENTÁRIA – RESERVA DO POSSÍVEL – INAPLICABILIDADE – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.1. É de competência da Vara da Infância e da Juventude o processamento e o julgamento de ação proposta exclusivamente contra o Município, com a finalidade de efetivar direitos difusos e coletivos afetos a crianças e adolescentes.2. Os entes federativos têm responsabilidade solidária por assegurar os direitos fundamentais das crianças e adolescentes.3. O dever de proteção a crianças e adolescentes imigrantes tem fundamento na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente e, de modo especial, na Opinião Consultiva n. 21, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estabelece, em resposta a consulta feita pelo Brasil e por outros países, que o Estado receptor da criança deve oferecer assistência material e programas de apoio, particularmente com respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação.4. Como decorrência disso, o Município tem o dever de adotar política pública que proporcione condições mínimas para retirar das ruas e assegurar proteção a crianças venezuelanas imigrantes.5. Como os direitos tutelados se inserem no núcleo mínimo de direitos fundamentais, não têm aplicação as cláusulas de reserva orçamentária e de reserva do possível, impondo-se apenas delimitar a obrigação quanto à quantidade e quanto à duração do fornecimento de abrigo e alimentação. (TJ-RR - AgInst: 0000170001671 0000.17.000167-1, Relator: Des. Mozarildo Cavalcanti. Data de Publicação: DJe 31/10/2017, p. 7) Quanto à alegação do Município de que a competência para a implementação do programa de monitoramento seria exclusiva da União, tal argumento não se sustenta diante do caráter concorrente das competências em matéria de assistência social e proteção da população vulnerável. A Constituição Federal, em seu artigo 30, inciso VII, atribui aos municípios a competência para "prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população". Este dispositivo, aliado ao princípio da solidariedade federativa, impõe aos municípios o dever de agir em cooperação com os demais entes federativos na implementação de políticas públicas, especialmente em contextos de vulnerabilidade social.
A implementação de um programa de monitoramento da população em situação de rua, com vistas à concessão de serviços sociais, é uma medida necessária para garantir os direitos fundamentais dessa população, independentemente de sua nacionalidade. A atuação do município, portanto, não apenas é compatível com a sua competência constitucional, como também é uma exigência decorrente dos princípios constitucionais mencionados. Portanto, aqui também não há que se falar em incompetência da Justiça Estadual para julgar a presente demanda, uma vez que a atribuição para a execução do monitoramento requerido na inicial é também do Município apelante, não podendo este ente quedar-se omisso. Ante o exposto, nego provimento ao recurso. É como voto. Des. Mozarildo Monteiro Cavalcanti - Relator
EMENTA
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SERVIÇOS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMA DE MONITORAMENTO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. OMISSÃO MUNICIPAL. INTERVENÇÃO JUDICIAL. CABIMENTO. VIOLAÇÃO À LEGISLAÇÃO E PRECEITOS CONSTITUCIONAIS. COMPETÊNCIA MUNICIPAL PARA IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMA DE MONITORAMENTO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. IGUALDADE DE TRATAMENTO ENTRE NACIONAIS E ESTRANGEIROS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS. RECURSO DESPROVIDO.
ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os membros da Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, por unanimidade, em negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator. Participaram do julgamento os Desembargadores Mozarildo Cavalcanti (Relator), Almiro Padilha e Cristóvão Suter.
Boa Vista/RR, 03 de outubro de 2024.
Mozarildo Monteiro Cavalcanti Desembargador(a)
|