DOCUMENTO 1
PROCESSO
InAC - Incidente de Assunção de Competência
90014125420248230000
ÓRGÃO JULGADOR:
Câmaras Reunidas
DATA DO JULGAMENTO:
26/07/2024
DATA DA PUBLICAÇÃO:
26/07/2024
EMENTA:
INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA (IAC) SUSCITADO EM SEDE DE CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA (CNC) – DELITO PRATICADO POR MILITAR, FORA DE SERVIÇO, CONTRA CIVIL, UTILIZANDO ARMA PERTENCENTE À CORPORAÇÃO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM – SUPERAÇÃO DA SÚMULA 47 DO STJ – REVOGAÇÃO DA ALÍNEA “F” DO INCISO II DO ART. 9.º DO CPM – CONFLITO DIRIMIDO, PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO SUSCITADO, COM A FIXAÇÃO DA SEGUINTE TESE: “Compete à Justiça Comum processar e julgar delito praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação”.
CÂMARAS REUNIDAS
INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA N.º 9001412-54.2024.8.23.0000. Proponente: Câmara Criminal. Relator: Des. Ricardo Oliveira.
RELATÓRIO
Trata-se de Incidente de Assunção de Competência (IAC) derivado do Conflito Negativo de Competência n.º 9000528-25.2024.8.23.0000, suscitado pelo Juízo de Direito da 1.ª Vara do Tribunal do Júri e da Justiça Militar da Comarca de Boa Vista, em face do Juízo de Direito da Comarca de Rorainópolis (1.ª Titularidade), tendo como objeto definir a competência para processar e julgar o Inquérito Policial n.º 0801787-05.2022.8.23.0047 (EP 1.1). No referido conflito, discute-se qual seria o juízo competente para processar e julgar o suposto crime de ameaça, praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação. Em parecer exarado nos autos do conflito, a Procuradoria de Justiça opinou pela declaração de competência do suscitado (Juízo de Direito da Comarca de Rorainópolis). Em seguida, na sessão da Câmara Criminal realizada no dia 25/06/2024, este Relator apresentou voto-preliminar propondo a instauração do presente Incidente de Assunção de Competência (IAC), o qual foi admitido pelo Colegiado, a fim de que fosse submetida à apreciação das Câmaras Reunidas a seguinte questão jurídica: “Definir a competência para processamento e julgamento de delito praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação”. Confira-se a ementa do v. acórdão:CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA (IAC) – DELITO PRATICADO POR MILITAR, FORA DE SERVIÇO, CONTRA CIVIL, UTILIZANDO ARMA PERTENCENTE À CORPORAÇÃO – SÚMULA 47 DO STJ – REVOGAÇÃO DA ALÍNEA “F” DO INCISO II DO ART. 9.º DO CPM – REQUISITOS PREENCHIDOS – ADMISSÃO. Preenchidos os requisitos legais, merece ser admitido o presente Incidente de Assunção de Competência (IAC), a fim de que seja submetida à apreciação das Câmaras Reunidas a seguinte questão jurídica: “Definir a competência para processamento e julgamento de delito praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação”. Por fim, instada a se manifestar, a Procuradoria de Justiça opinou “pelo conhecimento e provimento do presente Incidente de Assunção de Competência, para firmar a competência da Justiça Comum para julgar o crime praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando armamento pertencente à corporação” (EP 10). É o relatório. Inclua-se, em mesa, na sessão eletrônica a ser realizada no período de 22 a 25/07/2024. Boa Vista, 18 de julho de 2024. Des. RICARDO OLIVEIRA - Relator
VOTO
Preliminarmente, antes de adentrar ao mérito do presente incidente, faz-se necessária a análise do interesse público na assunção de competência, exigido no art. 947, § 2.º, do CPC, e reproduzido no art. 260, caput, e § 2.º, do RITJRR. Nas palavras de Camilo Zufelato, o referido requisito significa, “em última análise, que embora exista uma pretensão resistida ligando autor e réu, da qual decorre um pedido de tutela jurisdicional para o caso concreto, há também interesse público na resolução da própria questão de direito que subjaz ao caso, uma vez que essa é a oportunidade de assentar posição sobre a interpretação judicial da tese da ‘quaestio iuris’.” (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 4, Cassio Scarpinella Bueno, São Paulo: Saraiva, 2017, p. 103). Por sua vez, embora o conceito de interesse público seja aberto e indeterminado, guardando similaridade com a própria repercussão social, entende-se que, para efeitos de admissão da assunção de competência, deverá ser reconhecida “sempre que interessar a quantidade razoável de sujeitos” (Daniel Amorim Assumpção Neves, Novo Código de Processo Civil Comentado, Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 1541). Conforme asseverado no acórdão de instauração, o conflito de competência que originou o incidente decorre da divergência de interpretação pelos juízos acerca da competência para processar e julgar suposto crime de ameaça, praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação. A questão central reside na delicada intersecção entre a esfera militar e a civil, exigindo uma análise criteriosa dos princípios e normas que regem ambas as áreas. No caso dos autos, entendo que a complexidade e a relevância da matéria justificam a assunção da competência para julgamento colegiado, dado o interesse público envolvido. A análise da competência para julgar delitos envolvendo militares e civis requer a consideração de diversos aspectos jurídicos e institucionais, incluindo a legislação vigente e o papel das diferentes jurisdições. Além disso, a admissão do presente incidente representa uma oportunidade para assentar o entendimento no âmbito desta Corte, promovendo uniformidade e segurança jurídica sobre o tema. O efeito vinculante automático previsto no § 3.º do art. 947 do CPC garante que a decisão tomada neste caso servirá de base para a resolução de outros casos semelhantes. Ao resolver o IAC e definir o juízo competente para o caso, a Corte contribui para a celeridade, a eficiência e a segurança jurídica do processo, além de fortalecer a uniformidade da jurisprudência. DIANTE DO EXPOSTO, reconheço o interesse público na assunção de competência para julgamento do Conflito Negativo de Competência n.º 9000528-25.2024.8.23.0000 pelas Câmaras Reunidas. No mérito, conforme relatório já lançado nos autos, discute-se qual seria o juízo competente para processar e julgar delito praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação. De um lado, argumenta-se, com base na Súmula 47 do STJ, que “Compete à Justiça Militar processar e julgar crime cometido por militar contra civil, com emprego de arma pertencente à corporação, mesmo não estando em serviço”. De outro lado, sustenta-se que o crime praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando armamento pertencente à corporação, deve ser julgado pela Justiça Comum. Entende-se que a circunstância de o agente ter utilizado arma da corporação não é requisito essencial para atrair a competência da Justiça Militar. Assim, foi submetida ao crivo deste Tribunal a seguinte questão de direito: “Definir a competência para processamento e julgamento de delito praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação”. Inicialmente, cumpre registrar que o conflito negativo de competência originou-se a partir da dúvida da aplicação do mencionado entendimento sumular ao caso concreto. Dito isso, para compreender a Súmula 47 do STJ, faz-se necessário considerar o contexto de sua elaboração. O referido enunciado foi prolatado em 1992, com base na interpretação da redação do então vigente art. 9.º, II, “f”, do CPM, que assim definia: Art.9.º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: f) por militar em situação de atividade ou assemelhado que, embora não estando em serviço, use armamento de propriedade militar ou qualquer material bélico, sob guarda, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal; O acórdão que originou a súmula em questão mencionava explicitamente o artigo citado, servindo como fundamento para o entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça na época. Confira-se na ementa de um dos precedentes originários: CONFLITO DE COMPETÊNCIA - AGRESSÃO - ARMAMENTO MILITAR. - AGRESSÃO E DISPARO FEITOS POR POLICIAL MILITAR CONTRA CIVIL, COM ARMA DA CORPORAÇÃO, SE AJUSTA NA REGRA DO ART. 9, II, “F”, DO CÓDIGO PENAL MILITAR, O QUE O COLOCA SOB A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA CASTRENSE PARA SE VER PROCESSAR E JULGAR. - COMPETÊNCIA DA AUDITORIA DE JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. (STJ, CC 1875 SP, Rel. Ministro CID FLAQUER SCARTEZZINI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 18/04/1991, DJ 06/05/1991, p. 5641). Todavia, o Código Penal Militar sofreu diversas alterações com o passar do tempo, tendo o art. 9.º, II, “f”, sido revogado pela Lei n.º 9.299, de 08/08/1996. A partir daí, a circunstância de ter o acusado, policial militar, utilizado arma de propriedade da corporação para cometimento do delito deixou de ser critério para o enquadramento da conduta como crime militar. Nesse sentido, menciono o julgamento do HC 59.489/MG, de relatoria da Ministra Laurita Vaz, que reflete o atual entendimento do STJ quanto à questão: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE LATROCÍNIO. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. CRIME DE LATROCÍNIO PRATICADO POR POLICIAL MILITAR, DE FOLGA, DURANTE O COMETIMENTO DE UM ROUBO A UMA AGÊNCIA BANCÁRIA, CULMINANDO COM A MORTE DE UM POLICIAL MILITAR, EM SERVIÇO, QUE FAZIA PATRULHAMENTO DO LOCAL. PRECEDENTES DO STJ. 1. O simples fato de o agente do delito ser policial militar não atrai a competência da justiça castrense, pois, como res- tou evidenciado na instância ordinária, estava fora do servi- ço. Nesse particular, encontram-se, portanto, ausentes os requi- sitos do art. 9.º, do Código Penal Militar. 2. A circunstância de ter o co-réu, policial militar, utilizado revólver de proprie- dade da corporação militar para matar a vítima e, assim, assegurar o sucesso do delito de roubo, tornou-se irrelevante em razão da vigência da Lei n.º 9.299/96, que revogou o dis- posto no art. 9.º, inc. II, alínea “f”, do Código Penal Militar. 3. Embora a vítima do crime de latrocínio tenha sido polici- al militar em serviço, não houve agressão às funções ou inte- resses da instituição militar, pois ele estava no local, para garantir a ordem pública, realizando patrulhamento osten- sivo, função tipicamente de policial civil. Nesse contexto, in- cide sobre a espécie o enunciado da Súmula n.º 297, do Supre- mo Tribunal Federal. 4. Ordem denegada. (STJ - HC: 59489 MG 2006/0109528-2, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Data de Julgamento: 22/08/2006, Quinta Turma, Data de Publicação: DJ 16/10/2006, p. 406). Embora o acórdão supracitado não mencione expressamente a revogação da súmula, o voto é claro no sentido de registrar a irrelevância da propriedade da arma do crime diante da revogação do texto legal. Conclui-se, portanto, que, mesmo que a Súmula 47 do STJ não tenha sido expressamente cancelada, deve ser considerada superada em razão da alteração legislativa superveniente (Lei n.º 9.299/96), que revogou o fundamento que deu origem à sua criação. Na doutrina, também tem sido apontada a superação do verbete sumular, conforme ensina Luciano Anderson de Souza: SÚMULA SUPERADA – A Lei n.º 9.299/1996 revogou o art. 9º, II, “f” do CPM , que estabelecia que “Art. 9º Consideram- se crimes militares, em tempo de paz: (...) II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: (...) f) por militar em situação de atividade ou assemelhado que, embora não estando em serviço, use armamento de propriedade militar ou qualquer material bélico, sob guarda, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal”. [Súmula 47 do STJ – Compete à Justiça Militar processar e julgar crime cometido por militar contra civil, com emprego de arma pertencente à corporação, mesmo não estando em serviço.] (SOUZA, Luciano. Súmulas em Matéria Criminal In: SOUZA, Luciano. Código Penal Comentado - Ed. 2022. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2022) Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/sumulas-em- materia-criminal-codigo-penal-comentado-ed- 2022/1728397710. Acesso em: 2 de Julho de 2024). O mesmo doutrinador registra que as súmulas editadas pelo STJ, apesar de não possuírem força vinculante, apresentam grande relevância e culminam por se impor na prática, ainda que de forma não obrigatória ou absoluta. Contudo, é importante ressalvar que a lei escrita é a única fonte do Direito Penal e que as súmulas se destinam à sua interpretação, devendo respeitar os limites impostos por ela. Em atenção ao princípio da hierarquia normativa, que rege a prevalência da lei sobre normas infralegais, não poderá uma súmula se sobrepor à lei. Nesse sentido, a lição de René Dotti: A Súmula não tem a finalidade de substituir o direito positivo, mas de facilitar a sua aplicação nos casos concretos. Como já foi dito anteriormente, a lei escrita é a única fonte de Direito Penal. A jurisprudência está dirigida ao entendimento correto da lei, completando-a e aperfeiçoando-a, respeitados os valores que lhe serviram de inspiração. (DOTTI, René. Título XVII. Súmulas da Jurisprudência In: DOTTI, René. Curso de Direito Penal - Parte Geral. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2020). Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/curso-de-direito-penal- parte-geral/1196996200. Acesso em: 3 de Julho de 2024). Logo, ainda que a Súmula 47 do STJ não tenha sido expressamente cancelada, depreende-se que, com a alteração do dispositivo ao qual conferia interpretação, bem como com a modificação da jurisprudência do próprio órgão que lhe deu origem, encontra-se superada. Deveras, nos julgados mais recentes do Superior Tribunal de Justiça, observa-se claramente a inaplicabilidade da mencionada súmula, com prevalência do entendimento de que o crime ora em análise é da competência da Justiça Comum: CRIMINAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ROUBO COMETIDO, EM CONCURSO DE AGENTES, POR MILITARES, PORTANDO ARMA DA CORPORAÇÃO. INSUFICIÊNCIA DE ELEMENTOS HÁBEIS À CARACTERIZAÇÃO DA NATUREZA MILITAR DO DELITO. IRRELEVÂNCIA PARA A DETERMINAÇÃO DA NATUREZA DO CRIME. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. O fato de a arma utilizada por policiais militares em crime de roubo qualificado eventualmente pertencer à corporação militar que integram não torna, per se, o crime militar. Evidenciado que os denunciados encontravam-se de folga na noite do crime, ou seja, fora de situação de atividade ou em razão desta, caracteriza-se, a competência da Justiça Comum Estadual para o processamento do feito. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 4.ª Vara Criminal de Juiz de Fora, o suscitado. (STJ - CC: 110582 MG 2010/0022682-2, Relator: Ministro Gilson Dipp, Data de Julgamento: 13/12/2010, Terceira Seção, Data de Publicação: DJe 16/12/2010). PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. INADEQUAÇÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. AUTOR DO DELITO E VÍTIMA POLICIAIS MILITARES DA ATIVA. CONDUTA DELITIVA NÃO RELACIONADA AO EXERCÍCIO FUNCIONAL E EM LOCAL NÃO SUJEITO À ADMINISTRAÇÃO MILITAR. CRIME COMUM. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA CASTRENSE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 3. Na hipótese, verifica-se que o paciente e a vítima, policiais militares, no momento do homicídio, estavam fora de situação de atividade, em local não sujeito à administração militar, tendo sido o delito cometido por motivos alheios às funções castrenses, o que afasta a competência da Justiça Especializada, mesmo que tenha sido utilizada a arma da corporação. (STJ, HC n. 417.158/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 8/2/2018, DJe de 16/2/2018.) AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EXTORSÃO. DELITO COMETIDO POR MILITAR EM PERÍODO DE FOLGA. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA COMUM. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO PARA APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRELIMINAR. NULIDADE. INEXISTÊNCIA. PROCEDIMENTO ESPECIAL RESTRITO AOS CRIMES FUNCIONAIS TÍPICOS. CERCEAMENTO DE DEFESA PELA NÃO OBSERVÂNCIA DO DIREITO DE ENTREVISTA RESERVADA COM O ADVOGADO E DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA. SÚMULA N. 7/STJ. VIOLAÇÃO DO ART. 65, III, “d”, DO CÓDIGO PENAL. AUSÊNCIA. RECURSO DESPROVIDO. 1. Estando o militar de folga no dia do crime, ou seja, fora de situação de atividade ou em razão desta, caracteriza-se a competência da Justiça Comum Estadual para o processamento do feito. 2. O procedimento especial previsto no Capítulo II, do Título II, do Código de Processo Penal, apenas se aplica aos crimes próprios e impróprios previstos no Código Penal, não abarcando outros ilícitos comuns, ainda que a qualidade de funcionário público os qualifique ou caracterize causa de aumento de pena (ut, HC 167.503/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Quinta Turma, DJe 29/05/2013). 3. As matérias atinentes ao cerceamento de defesa pela não observância do direito de entrevista reservada com o advogado e à desclassificação da conduta delitiva para o crime de concussão, não prescindem do reexame do conteúdo fático- probatório dos autos. Incidência da Súmula n. 7/STJ. 4. A instância de origem assentou a inexistência de confissão espontânea do agente, tendo a condenação se lastreado em outros elementos de prova colhidos na instrução processual, tais como documentos e depoimentos das vítimas e dos policiais. 5. Agravo regimental improvido. (STJ, AgRg no AREsp n. 1.109.730/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 14/11/2017, DJe de 24/11/2017.) AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. POLICIAL MILITAR DA ATIVA EM FÉRIAS. USO DO CARGO PARA TENTAR ENCOBRIR A CONDUTA DELITUOSA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. AGRAVO IMPROVIDO. 1. A Terceira Seção desta Corte, no julgamento do Conflito de Competência 162.399/MG, em 27/2/2019, publicado no DJe em 15/3/2019, sufragou o entendimento segundo o qual, a conduta criminosa do militar da ativa, fora do lugar e horário de serviço, sem ter se valido do cargo para cometimento do delito, permite caracterizar o agente, nesta hipótese, como civil, circunstância que afasta a aplicação do art. 9º, II, “a”, do Código Penal Militar e, por conseguinte, firma a competência da justiça comum. 2. Situação na qual o denunciado, ora agravante, mesmo em férias, valeu-se de seu cargo de policial militar - na ativa - para tentar encobrir a sua conduta delituosa, afirmando aos agentes rodoviários, inclusive, que “era da casa”, o que define, a contrario sensu, a competência da justiça castrense. 3. Agravo regimental improvido. (STJ, AgRg no RHC n. 119.820/MS, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 17/12/2019, DJe de 4/2/2020.) Em caso similar: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. POLICIAL MILITAR CONDENADO PELO ARTIGO 15 DA LEI 10826/03 C/C ARTIGO 298 DO CPM, TODOS C/C ART. 70, II, “C”, N/F DO ART. 79 do CPM. DELITO DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO PRATICADO COM A ARMA DA CORPORAÇÃO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA O JULGAMENTO DO FEITO. RÉU QUE ESTAVA DE FOLGA E NÃO USAVA A ROUPA DA CORPORAÇÃO. Interpretação conferida ao art. 9º, II, c do Código Penal Militar pelo Ministério Público para enquadrar a conduta do acusado como sendo crime militar pelo simples fato de ter cometido, em tese, delito do Estatuto do Desarmamento valendo-se de uma arma de fogo sob sua guarda pertencente à corporação, não está correta. Redação original do Código Penal Militar, no artigo 9º, inciso II, “f” que fazia menção ao emprego de “armamento de propriedade militar ou qualquer material bélico, sob guarda, fiscalização ou administração militar, para a prática de ato ilegal” para caracterizar uma conduta como sendo crime militar. Essa alínea foi revogada pela Lei nº 9.299/96, de modo que não mais se pune como crime militar uma conduta pelo simples fato de o militar ter utilizado arma de fogo da corporação a que pertence. Ademais, o recorrente, quando, em tese, efetuou o disparo de arma de fogo no banheiro público, estava de folga, não trajava farda, não se apresentou como policial militar, não conduzia viatura policial, tratando-se, portanto, de conduta praticada em contexto dissociado do exercício regular de suas funções e em lugar não vinculado à Administração Pública. Precedentes no STJ. Evidencia-se, pois, a competência da Justiça Comum Estadual para processar e julgar o delito referente ao Estatuto do Desarmamento. Recurso CONHECIDO e PROVIDO para Por tais razões, dirijo meu voto no sentido de DAR PROVIMENTO para declarar a incompetência absoluta do Juízo da Auditoria de Justiça Militar do Estado do Rio de Janeiro para julgar o delito referente ao artigo 15 da Lei 10826/03, devendo a denúncia ser retificada neste sentido e os autos serem encaminhados ao Juízo comum. (TJRJ - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO: 0007396- 54.2022.8.19.0001 202405100114, Relator: Des. PAULO SÉRGIO RANGEL DO NASCIMENTO, Data de Julgamento: 21/05/2024, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 24/05/2024). Registre-se, ainda, que há precedente da Câmara Criminal sobre o tema: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA – 2.ª VARA DO TRIBUNAL DO JÚRI E DA JUSTIÇA MILITAR DA COMARCA DE BOA VISTA/RR (SUSCITANTE) E 2.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE BOA VISTA/RR (SUSCITADO) – DISPARO DE ARMA DE FOGO POR POLICIAL MILITAR EM DIA DE FOLGA E SEM ATUAÇÃO DE FUNÇÃO MILITAR – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM – CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DA 2.ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE BOA VISTA/RR PARA JULGAR A AÇÃO PENAL N. 0836076-80.2019.8.23.0010 EM CONSON NCIA COM O PARQUET GRADUADO. (TJRR – CJ 9002749-49.2022.8.23.0000, Rel. Des. Jésus Nascimento, Câmara Criminal, julg.: 07/07/2023, public.: 07/07/2023). PELO EXPOSTO, no mérito, com fulcro no art. 947, § 2.º, do CPC, e no art. 260, § 2.º, do RITJRR, declaro a competência do Juízo de Direito da Comarca de Rorainópolis (1.ª Titularidade) para processar e julgar o Inquérito Policial n.º 0801787-05.2022.8.23.0047, fixando a seguinte tese: “Compete à Justiça Comum processar e julgar delito praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação”. É como voto. Boa Vista, 22 de julho de 2024. Des. RICARDO OLIVEIRA - Relator
EMENTA INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA (IAC) SUSCITADO EM SEDE DE CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA (CNC) – DELITO PRATICADO POR MILITAR, FORA DE SERVIÇO, CONTRA CIVIL, UTILIZANDO ARMA PERTENCENTE À CORPORAÇÃO – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM – SUPERAÇÃO DA SÚMULA 47 DO STJ – REVOGAÇÃO DA ALÍNEA “F” DO INCISO II DO ART. 9.º DO CPM – CONFLITO DIRIMIDO, PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO SUSCITADO, COM A FIXAÇÃO DA SEGUINTE TESE: “Compete à Justiça Comum processar e julgar delito praticado por militar, fora de serviço, contra civil, utilizando arma pertencente à corporação”.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os membros das Câmaras Reunidas do egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, por unanimidade, em admitir do Incidente de Assunção de Competência (IAC) e dirimir o Conflito Negativo de Competência n.º 9000528-25.2024.8.23.0000, com a fixação de tese, nos termos do voto do Relator. Presenças: Des. Ricardo Oliveira (Presidente e Relator), Des. Almiro Padilha (Julgador), Desa. Tânia Vasconcelos (Julgadora), Desa. Elaine Bianchi (Julgadora), Des. Cristóvão Suter (Julgador), Des. Erick Linhares (Julgador), Juiz Convocado Luiz Fernando Mallet (Julgador) e o representante da douta Procuradoria de Justiça.
Sala das Sessões, em Boa Vista, 25 de julho de 2024. Des. RICARDO OLIVEIRA - Relator
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